as linhas que nos tecem
quando o sol sorria, ela sentava-se à sombra na esplanada no centro da vila, uns dias a observar a vida, outros a ler um livro. vivia numa casa cheia de luz, com um gato e muitas plantas a quem chamava de antepassados. gostava de lhes cantar, ao sabor da inspiração. as únicas cantigas que repetia eram a dos seus guias e a do amigo de quatro patas. gostava de ver comédias românticas. deixara de seguir as notícias, para preservar a alegria.
ele também era presença assídua na esplanada. sentava-se ao sol, quase sempre acompanhado por mulheres que mudavam como as estações do ano. ou então sozinho, em longas conversas ao telemóvel. ela observava. durante anos. sem nunca cruzarem um olhar. cada um no seu mundo. quando estava sozinho, namoricava as empregadas. tinha a vida preenchida de mulheres esporádicas. um dia levantaram-se os dois ao mesmo tempo. cruzaram o olhar.
as almas reconheceram-se. sem uma palavra, caminharam um para o outro. e beijaram-se suavemente. saboreando os lábios um do outro. como quando se recorda o verdadeiro tocar. o universo envolveu-os numa espiral de luz. por uns minutos, só o toque era real. ela lembrou a mornura do coração quando se é amada. ele lembrou as borboletas no estômago de quando se ama. sorriram, olhos nos olhos. sem uma palavra, cada um seguiu o seu caminho.
ela regressou a casa. a alma curada. abriu a porta do pátio ao gato e caiu no chão. o corpo morto.